quinta-feira, 22 de maio de 2014

Antes o mundo não existia

Quando eu vejo as narrativas, mesmo as narrativas chamadas antigas, do Ocidente, as mais antigas, elas sempre são datadas. Nas narrativas tradicionais do nosso povo, das nossas tribos, não tem data, é quando foi criado o fogo, é quando foi criada a Lua, quando nasceram as estrelas, quando nasceram as montanhas, quando nasceram os rios. Antes, antes, já existe uma memória puxando o sentido das coisas, relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a vida, com o comportamento nosso, com aquilo que pode ser entendido como o jeito de viver. Esse jeito de viver que informa nossa arquitetura, nossa medicina, a nossa arte, as nossas músicas, nossos cantos.
[...]
Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha que ai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e veem o humor da montanha e veem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio... mas o cientista olha o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.
Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte o acervo dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música,  a montanha não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura, essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os eventos em datas, tem antes e depois.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
 
Questões:
1) O texto de Krenak indica outra forma de pensar o mundo da cultura. Você acredita que o tipo de cultura defendido por ele tem condições de sobreviver num mundo cada dia mais tecnificado?
 
2) O que esse tipo de visão de mundo pode ensinar para as pessoas que vivem em nossa sociedade, no século XXI?


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