Paul
Raj tinha 18 anos quando seu professor de sociologia entrou na sala de aula,
desenhou uma pessoa na lousa e começou a explicar a estrutura de castas da
sociedade na Índia - seu país de origem. A cabeça (Brahmim) representa os
religiosos; os braços (Veishya) são os guerreiros e militares; os joelhos
(Kshathriya) representam os nobres e os ricos; os pés (Shudra) são os
fazendeiros e comerciantes. A poeira sob os pés não pertence às castas mas
também tem um nome: são os párias, os chamados Intocáveis. Eles formam a
escória da sociedade indiana. São considerados impuros e, por isso, ninguém
ousa nem ao menos encostar neles. Foi só ao ouvir aquilo que Paul finalmente
entendeu dezenas de episódios da sua vida.
Quando
ele tinha 8 anos, encontrou seu irmão amarrado a uma árvore, com as pernas cobertas
de formigas vermelhas. O garoto estava sendo punido por ter entrado no jardim
de um vizinho. Paul estava com o pai, que se ajoelhou e, chorando, começou a
pedir clemência. É difícil de acreditar, mas a reação do dono da casa foi bater
no pai e manter o castigo.
"A
esposa do dono jogava açúcar na perna dele para atrair mais formigas e os
filhos dela ficavam rindo em volta. Ficamos ali parados, vendo meu irmão ser
comido vivo, sem fazer nada", diz Paul, que hoje tem 22 anos.
As
regras que Paul deveria seguir eram inúmeras. Ele não podia beber água do rio,
como faziam todas as pessoas da cidade (no lugar, devia andar muito até chegar
num poço em que a água era barrenta e tinha um gosto estranho), não podia ir a
lugares públicos e tinha que ter cuidado para que nem sua sombra atravessasse o
caminho de uma pessoa de casta superior. Além disso, como todos os intocáveis,
não podia ir à escola. Por isso, quando Paul tinha 11 anos, seus pais
autorizaram um missionário francês a assinar um documento dizendo que ele era
órfão. Paul foi enviado a um orfanato onde podia estudar.
A
vida no orfanato não foi fácil. Além da distância dos pais, que ele não
entendia muito bem, Paul era obrigado a dar duro na faxina dos banheiros e no
preparo das refeições. Ele morava com outras 78 crianças e as condições do
orfanato eram tão precárias que eles tinham que dividir um único lençol de
casal entre 18 crianças todas as noites.
"Me
lembro uma vez em que estava trabalhando na cozinha e vi uma barata caindo na
panela do molho. Eu gritei e meu supervisor logo apareceu. Ele tirou a barata
da panela com a mão, tampou e me mandou servir para as outras crianças sem
contar nada sobre o ocorrido. Eu não disse nada porque todas as crianças que
questionavam ou reclamavam eram expulsas do orfanato", conta Paul.
A
cada 6 meses, ele conseguia encontrar seu pai por meia hora, e escondido.
"Ele sempre me trazia um doce e eu nunca comia de uma vez. Ia de pouquinho
em pouquinho, para ter a presença do meu pai por mais tempo", lembra
sorrindo. Na única vez em que sua mãe foi visitá-lo, perto de um natal, o
disciplinário acabou descobrindo e escorraçando-a dali.
"Foi
muito ruim ver minha mãe ser maltratada e não poder fazer nada", diz Paul.
Para piorar, o disciplinário tomou das mãos de Paul a cesta com comida que sua
mãe tinha levado e a distribui entre todos os alunos.
Mas
Paul era um ótimo aluno e, aos 18, conseguiu entrar na faculdade de Direito - o
que mudou sua vida completamente. A começar pela aula do professor de
sociologia. Naquela mesma noite, Paul foi para a biblioteca e retirou mais de
40 livros sobre a sociedade de castas indianas. Leu cada um deles, tentando
encontrar todas as respostas que passou a vida sem ter para quem perguntar. Na
teoria, as castas são ilegais desde 1952. Mas na prática, é muito diferente.
Mas
descobrir a origem do sofrimento da sua infância não tornou sua vida mais
fácil. "Eu não podia contar minha origem a ninguém. E era horrível saber
que eu não estava sendo sincero com meus amigos", diz. Paul se sentia tão
angustiado que foi conversar com seu professor e contou sobre sua condição. O
professor sabia que a maior parte dos alunos reagiria muito mal à notícia e
aconselhou a Paul continuar mantendo aquilo como segredo. Mas Paul não
agüentava mais mentir aos seus amigos e, numas férias escolares, convidou os 6
mais próximos para passarem uma semana na casa de seus pais. Alertou que não
haveria quartos nem cama nem televisão, mas não explicou as razões para isso.
"Eu sabia que ia ser uma experiência radical, mas todo mundo estava
encarando a viagem como uma aventura. Eles não imaginavam o que é, na prática,
uma família de sete pessoas morando numa casa de 3 cômodos. As mulheres dormem
na cozinha. Os homens, na varanda - junto com os bichos, para guardar a casa.
Não temos tomada nem nenhum aparelho eletrônico. O banheiro fica do lado de
fora e não tem água encanada."
Quando
chegaram à casa de Paul, os amigos não entendiam porque a família se recusava a
freqüentar lugares públicos ou a conversar com as pessoas que passavam na rua,
mas Paul desconversava quando eles perguntavam alguma coisa. Ele ainda não
tinha certeza de que os amigos iriam aceitar a situação. "Só que, durante
o jantar, minha mãe, que estava muito feliz com a presença deles, agradeceu a
todos por serem meus amigos mesmo nossa família sendo de intocáveis. Na hora,
senti que meu mundo estava desmoronando."
Logo
que o jantar acabou, Paul abriu o jogo. Um dos amigos que estava lá, e era da
casta dos Brahmins, não aceitou a situação. Foi embora ao amanhecer e tratou de
contar para todos os alunos da sala que Paul era um intocável. Sua vida na
faculdade nunca mais foi a mesma. Quando as aulas voltaram, todos haviam mudado
com ele. "Onde quer que eu me sentasse, sempre haveria pelo menos três
cadeiras vazias à minha volta. Foi muito duro e eu estava prestes a abandonar a
faculdade. Mas foi aí que apareceu a Shilpa".
Shilpa
era uma garota da sala de Paul. Um dia ela chegou para ele e disse que não concordava
com essa historia de casta, e que ele podia contar com ela! Eles começaram a se
conhecer, iam a lugares juntos, até que ele acabou se apaixonando. Um ano
depois, no dia dos namorados, Paul comprou flores e foi falar com ela.
"Quando a encontrei, comecei a gaguejar e quase fugi correndo, mas falei
tudo o que queria." Shilpa contou que também estava apaixonada e disposta
a enfrentar qualquer desafio para ficarem juntos.
A
companhia de Shilpa fez com que Paul percebesse a importância de lutar contra
um preconceito tão sem sentido. Por causa disso, passou a trabalhar como
voluntário em diversos projetos e a participar de grupos de discussão sobre
direitos humanos e discriminação racial. Se destacava em todos os grupos, mas
ainda assim tinha que conviver com o preconceito contra o qual tanto lutava.
"Uma
vez, meu colega brahmim, o mesmo que havia ido embora da minha casa quando
descobriu minha origem, organizou uma festa e convidou todos os 67 alunos da
sala, menos a mim. Todos estavam empolgados com a festa, mas quando Shilpa
soube que eu não havia sido convidado, foi perguntar a ele por que, na frente
de todos. Ele disse que não me convidou porque eu era um intocável e ela disse
que, sendo assim, também não iria. Para minha surpresa, várias outras pessoas também
decidiram, naquele momento, que não iriam à festa". E essa não foi a única
vez que Shilpa se sacrificou por Paul.
No
fim do último ano da faculdade, Paul estava sem dinheiro para pagar a
mensalidade. Um dia antes dos exames, um dos professores entrou na sala dizendo
na frente de todos que ele não poderia fazer os exames porque não havia pago
completamente os estudos. "É lógico que todo mundo começou a rir e eu me
senti muito humilhado", conta. No mesmo dia, à tarde, Shilpa chegou com o
dinheiro na mão e sem seus brincos de ouro favoritos, um presente de
aniversario de seus pais. "Eu não podia aceitar, nem acreditar no que ela
estava fazendo. Ela me disse que se eu amasse ela, eu aceitaria e faria meus
exames. Eu sabia que ela estava certa."
Paul
formou-se em 2002. "Não consigo descrever como foi para os meus pais me
ver chegando em casa, com um diploma na mão. Em toda minha vila, que tem 5 mil
pessoas, apenas 7 foram para a faculdade. E eu era o primeiro intocável",
conta. Paul diz que lembra de sua mãe correndo pelas ruas chamando todo mundo
para ir à casa e do seu pai sentado na varanda, com um cigarro na mão, contando
a todos a boa nova e mostrando o diploma como se fosse o mais precioso dos
troféus.
Mas
este estava longe de ser a última alegria que Paul daria a seus pais. Depois de
formado, Paul foi convidado por uma organização internacional para fazer um
estágio em Londres, na Inglaterra. Ele foi
"Lembro
como fiquei impressionado com o banheiro. Era como uma casa para mim: você pode
guardar coisas dentro e ainda tem água à vontade", diz já mais acostumado
ao ambiente e aos banhos - ele demorou uma semana para ter coragem de entrar
debaixo do chuveiro. "No primeiro banho, não sabia nem como ligar o
chuveiro. Depois, me senti tomando banho em uma cachoeira, mal podia acreditar
que aquilo estava acontecendo dentro de uma casa."
Mas
o dia mais emocionante da temporada londrina de Paul foi quando a chefe do
programa de estágio o abraçou. Foi o primeiro abraço que Paul recebeu na vida,
de alguém que não era da sua família (ele e Shilpa, por exemplo, apesar de
estarem juntos há 6 anos, nunca se beijaram na boca, nem na bochecha).
"Foi muito estranho. Eu nem sabia exatamente o que fazer e estava um pouco
com medo. Mas quando percebi que estava sendo abraçado, não queria mais largar.
Acabei caindo no choro."
Agora,
Paul se prepara para voltar para casa. Ele e Shilpa estão noivos e querem,
juntos, ajudar a mudar seu país. Durante o tempo na Inglaterra, Paul viajou
para diversos países, conheceu muita gente empenhada em transformar os absurdos
que ainda existem no mundo e se capacitou para levar um pouco desse
conhecimento de volta à Índia. Mas, mesmo assim, ele tem medo de não conseguir
mudar uma realidade que dura há tanto tempo."Tenho medo de fracassar, de
não conseguir fazer com que meu povo entenda que precisa lutar por seus
direitos. Se eles são desprezíveis demais até mesmo para serem tocados, como
vão brigar para serem ouvidos?"
* O
autor João Scarpelini já foi integrante da Galera e colunista da CAPRICHO. Há
nove meses, vive em Londres e trabalha para a mesma organização que ofereceu o
estágio a Paul. Os dois se tornaram grandes amigos. Num país diferente, o
indiano Paul Raj aprendeu que podia ser igual a todo mundo
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