quinta-feira, 25 de junho de 2015

Religião

Esses dias eu fui numa festa. Um monte de gente comendo, falando alto, dançando, sorrindo. Num canto, uma senhora carrancuda. Perguntei ao amigo “quem é?”, “é minha mãe”, respondeu. E por que tá triste? Não tá triste, tá irritada e nervosa. Por quê? Porque é crente e estamos tocando músicas não cristãs na festa.
Que merda essa religião que castra o corpo, que enrijece a alma, enruga o rosto e recrudesce o espírito. E não só o de seus adeptos, mas o de todos que se submetem mesmo que como alvo desse olhar austero.

Esses dias vi um programa em que um hare krishna passava uma semana na casa de uma família bem humilde e católica. Ele infernizou a casa em sete dias. Queria impor seus ritos e uma liturgia que contemplasse mais as suas necessidades religiosas do que a possibilidade de uma relação alegre entre diferentes. Lá pelo terceiro dia, as crianças da casa, principal aferidor de saúde emocional e alegria de um ambiente, já não aguentavam mais o sacerdote laranja.
Que merda essa religião que impõe ritos e liturgias que mais nos abstraem da vida e das relações do que nos projetam para o mundo e para os outros, oferecendo uma espiritualidade sadia.
Esses dias uma menina evangélica foi agredida na escola porque tinha o cabelo comprido. Ela só tinha 12 anos e teve que mudar de escola e cidade por conta da hostilidade.
Esses dias foi uma outra menina de 11 anos, agredida a pedradas ao sair de um encontro do candomblé.
Outro dia foi uma menina de 11 anos, perseguida por uma freira num colégio por não saber rezar. Ficou sem a refeição por dias a fio, até, pela dor da fome, ter a coragem de contar para a mãe o que estava acontecendo.
As três poderiam ser amigas, confidentes, terem os mesmos sonhos e desejos castrados pelo medo de ser o que, talvez, nem saibam o quê.
Que merda essa não religião que não tolera a religião.
Que merda essa religião que desrespeita o outro e o agride por ter outra religião.
Que merda essa religião que não tolera a ausência da religião.

[...]

Fabrício Cunha dos Santos

Postado original e integralmente no perfil do Facebook do autor.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O Panóptico de Foucault

O Panóptico de Bentham [...] é conhecido: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior correspondendo às janelas, uma para o interior correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo feito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhetas cativas as celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico oganiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconheer imediatamente. Em suma, o princípio da masmrra é invertido; ou antes, de suas três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia capta melhor do que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha [...].
 Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilâncias seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja um máquina de criar e sustentar uma relação de poder dependente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores.  Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso, Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo. Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia, para que os prisioneiros, de suas celas, não pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz, previu Bentham, não só persianas nas janelas da sala central de vigia, mas, por dentro, separações que a cortam em ângulo reto e, para passar de um quarto a outro, não portas, mas biombos: pois a menor batida, a luz entrevista, uma claridade, numa abertura, trariam a presença do guardião. O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser-visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 34ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 165-167.